segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

MPB

A MPB que o Brasil não conhece

A diversidade cultural do nosso povo emerge nos quatro CDs da caixa Música do Brasil, resultado de um ambicioso mapeamento musical do país

Carlos Calado
27/06/2000
Já virou chavão dizer que a música tocada nas rádios e TVs brasileiras está longe de refletir a imensa diversidade sonora do país. Essa constatação ganha um sentido de verdade escancarada, quando se ouve os quatro CDs da caixa Música do Brasil, resultado de um ambicioso projeto de mapeamento musical idealizado pelo antropólogo Hermano Vianna, que chega às lojas no mês que vem pela Abril Music.

Durante um ano, a equipe desse projeto cruzou o país de ponta a ponta, num percurso total de 80 mil quilômetros, para gravar mais de uma centena de grupos e bandas de diversos estilos musicais, radicados em mais de 80 cidades. Esse material riquíssimo rendeu, além da caixa de CDs, uma série de 15 programas veiculados pela MTV, um livro e um site na Internet ( www.musicabr.com.br).

Decididos a traçar um abrangente retrato musical do país, Hermano e o editor Beto Villares optaram por registrar "um pouco de tudo", com menor ênfase na música indígena. Os dois afirmam, no livreto incluído na caixa, que Música do Brasil não pretende "resgatar" músicas ou artistas populares ignorados pelo mercado. "Resgate é para acidentados, desaparecidos, seqüestrados", ironizam, argumentando que o fato de essas manifestações musicais viverem de forma paralela ao repertório das rádios e TVs não as isola do resto do país. De algum modo, essas músicas seguem se modificando e dialogando com o que transita na mídia.

Organização por temas Diferentemente do produtor Marcus Pereira, que nos anos 70 seguiu à risca o conceito de seu Mapa Musical do Brasil, dividindo a música do país em regiões geográficas, Vianna e Villares preferiram organizar o material colhido por temas, inspirados no musicólogo e escritor Mário de Andrade. Desse modo, em vez de associar formas ou estilos musicais similares, dirigem seu foco sobre temas e questões que acabam se ligando de alguma maneira à questão da identidade brasileira.

É o que faz Mestre Laurentino, em sua divertida Lourinha Americana  uma das faixas mais deliciosas do primeiro CD, intitulado Música dos Homens, das Mulheres e das Umbigadas. Num misto de bom humor e ingenuidade, o veterano cantor, compositor e gaitista de Belém do Pará toca ao mesmo tempo nos temas do racismo e no preconceito social.

Abrindo mão de uma classificação mais didática ou musical, a seleção das faixas acaba ressaltando mais ainda a imensa variedade de ritmos. Do coco cantado por Dona Hilda, que em Maceió (AL) é chamado de samba ou até de pagode, viaja-se pelo cururu de Varginha (MT), pelos caboclinhos de Ceará-Mirim (SE), pelo tambor de taboca de São Luís (MA), pela sambada de Nazaré da Mata (PE), pelos congos de Oeiras (PI), pelo samba-frevo de Juazeiro do Norte (CE), pelo batuque de Curiaú (AP).

Lendas e histórias contadas em música Esse ziguezague traçado por ritmos e manifestações musicais diferentes, que foram registrados nos mais diversos cantos do país, prossegue nos dois CDs seguintes  os mais homogêneos da caixa, em nível temático. Do fandango Marinheiro (de Paranaguá, PR) ao caxambu Eu Nasci em Angola (da Comunidade São José da Serra, em Valença, RJ), o CD Música dos Mares e das Terras revela personagens típicos, lendas e histórias como a da Nau Catarineta (gravada em Marante, PI), a da guerra entre cristãos e mouros (Marujada de Montes Claros, MG) ou a da pedra-boneca Iansã (no samba de aboio de Santa Bárbara, SE).

Já em Música dos Santos, deuses e entidades religiosas de várias origens são cultuados em faixas como a Cantiga para Oxalá (na voz encantadora de Ebonmi Delza, do terreiro de candomblé de Gantois, em Salvador, BA), a Marcha de Nossa Senhora do Rosário(na congada dos Arturos, em Contagem, MG) ou São Benedito Sua Casa Cheira (no moçambique de Aparecida do Norte, SP).

Finalmente, no CD Música das Coisas, dos Bichos e dos Vegetais, a unidade temática volta a ser um fio mais tênue. Do som primitivo das enxadas do Zambiapunga de Taperoá (BA) à rabeca do Boi-de-Reis de Cuité (RN), passando pelos metais e a percussão de Mestre Barachinha e Maracatu Cambinda Brasileira de Nazaré da Mata (PE), ou ainda o vocal a capela de Dona Noêmia de Belém (PA), chamam atenção tanto a variedade de ritmos como a diversidade instrumental.

Vale destacar também os textos escritos por Hermano Vianna, no bem-cuidado encarte da caixa (recheado de belíssimas fotos, quase todas em preto e branco, de autoria de Ernesto Baldan). Combinando concisão, pinceladas musicológicas e detalhes biográficos dos artistas, essas anotações cumprem muito bem o papel de informação básica, revelando ao mesmo tempo detalhes que enriquecem a audição dos CDs.

O projeto Música do Brasil chega na hora certa. Fechando uma década em que até o pop e o rock nacional parecem ter perdido enfim a vergonha de beber nas fontes da música popular brasileira, essa iniciativa pode ampliar o interesse por essa música tão rica e original, que segue seu caminho apesar das rádios e TVs.


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